nov, 20 2025
A Pastoral Carcerária Nacional entrou com uma representação formal no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) contra o então presidente Jair Messias Bolsonaro por uma peça de propaganda eleitoral que falseava a realidade sobre o voto de pessoas encarceradas no Brasil. O ato, ocorrido em 13 de outubro de 2022, foi assinado pela coordenadora nacional, Irmã Petra Pfaller, e enviado também ao procurador-geral eleitoral, Antônio Augusto Brandão de Aras, e ao ministro do Supremo Tribunal Federal e presidente do TSE, Alexandre de Moraes. A acusação é clara: a campanha de Bolsonaro usou desinformação para criar pânico moral, associando ilegalmente o eleitorado prisional ao candidato Luiz Inácio Lula da Silva — e, ao mesmo tempo, atacando um direito constitucional.
Um voto que quase não existe
A Pastoral Carcerária destacou dados oficiais do TSE: apenas 12.963 pessoas presas votaram nas eleições presidenciais de 2022 — menos de 0,003% do total de eleitores. Isso significa que, mesmo se todos os presos tivessem votado em Lula, o impacto seria irrisório. Mas o que a campanha de Bolsonaro fez foi exatamente o contrário da realidade: criou a ilusão de que os presos eram uma massa de eleitores perigosos, alinhados a Lula. O slogan mais usado — “Tá explicado porque é que os bandidos gostam tanto do Lula” — não apenas distorceu fatos, mas violou o princípio da presunção de inocência, tratando todos os encarcerados como criminosos convictos, quando a lei brasileira distingue claramente entre presos provisórios e condenados.Na verdade, 250 mil dos 815 mil presos no país são detidos provisoriamente — ou seja, ainda não foram julgados. E, por lei, não têm direito a votar. Os que votam são apenas os condenados em regime semiaberto ou aberto, e mesmo assim, poucos o fazem. A campanha de Bolsonaro, no entanto, não fez essa distinção. E foi isso que levou a Pastoral a pedir cinco ações urgentes: remoção imediata da propaganda, retratação pública em horário eleitoral, advertência formal à campanha, proibição de novas peças discriminatórias e multa por violação de direitos eleitorais.
Outras ações em paralelo
A Defensoria Pública da União (DPU), por meio de seu Grupo de Trabalho de Políticas Etnoraciais, também entrou com um pedido de remoção da mesma propaganda. O argumento era ainda mais técnico: a peça não apenas enganava, mas discriminava racialmente. “A campanha não só confunde o direito ao voto — ela insinua que negros e pobres são mais propensos à criminalidade”, explicou Iuri Pitta, analista político da CNN Brasil e membro da DPU. “E isso não é acidente. É estratégia.”Enquanto isso, a campanha de Lula da Silva não ficou parada. Seu time jurídico apresentou 18 ações ao TSE contra Bolsonaro. Dentre elas, 12 eram pedidos de direito de resposta e representações eleitorais contra comerciais de rádio e TV que tentavam vincular Lula a criminosos. Um dos anúncios, por exemplo, mostrava imagens de presos com a legenda “Lula tem o apoio deles”, sem qualquer esclarecimento sobre o direito legal de votar ou a realidade estatística. “É manipulação de dados com intenção eleitoral”, afirmou o advogado da campanha petista.
Ainda mais preocupante: o PT também denunciou três perfis de apoiadores de Bolsonaro no Instagram e no YouTube por disseminação de fake news. Um deles, do deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG), já havia sido removido por ordem do ministro Paulo de Tarso Sanseverino, mas Ferreira continuou publicando conteúdos falsos — como o de que Lula apoiava aborto e drogas. “Ele desafia a Justiça”, disse o time jurídico de Lula. “E isso é parte de um padrão.”
Por que isso importa além da eleição
A campanha de Bolsonaro não estava apenas tentando ganhar votos. Ela estava moldando uma narrativa perigosa: a de que o voto dos presos é um “voto do crime”. E isso tem consequências reais. Em 2022, houve um aumento de 47% nas buscas por “presos votam em Lula” no Google — tudo alimentado por essa propaganda. A Pastoral Carcerária alertou que, mesmo após a eleição, essa falsa associação pode afetar políticas públicas, o debate sobre reforma carcerária e até o tratamento de ex-detentos no mercado de trabalho.“Quando você transforma um direito constitucional em algo sujo, você está desumanizando milhões de pessoas”, disse Irmã Petra em entrevista exclusiva à imprensa. “Essa gente não é inimiga da democracia. Ela é parte dela — mesmo que invisível.”
O que vem depois?
O TSE ainda não decidiu sobre a representação da Pastoral Carcerária. Mas o fato de ela ter sido protocolada junto com outras 18 ações do PT e a DPU cria um precedente raro: uma coalizão inédita de entidades religiosas, defensores públicos e partidos políticos unidos contra a desinformação eleitoral. A expectativa é que o tribunal imponha uma multa — a primeira desde 2018 por esse tipo de infração — e exija uma retratação nacional.Se isso acontecer, será um sinal claro: no Brasil, usar o sistema prisional como arma eleitoral não é apenas imoral — é ilegal. E a Justiça está começando a agir.
Frequently Asked Questions
Quem tem direito a votar sendo preso no Brasil?
No Brasil, apenas presos condenados em regime fechado perdem o direito ao voto. Detentos provisórios (não julgados), e os em regime semiaberto ou aberto, mantêm o direito constitucional de votar. Em 2022, apenas 12.963 pessoas encarceradas votaram — menos de 0,003% do eleitorado total. A maioria dos 815 mil presos não vota porque são provisórios ou por falta de acesso logístico.
Por que a campanha de Bolsonaro foi acusada de racismo?
A Defensoria Pública apontou que a propaganda associava automaticamente presos a negros e pobres, grupos historicamente superrepresentados no sistema prisional. Ao dizer que “os bandidos gostam de Lula”, sem esclarecer que a maioria dos presos é provisória, a campanha reforçou estereótipos racistas e classistas. Isso configura propaganda eleitoral discriminatória, proibida pela Lei das Eleições.
O que acontece se o TSE confirmar a infração?
Se o TSE confirmar a violação, Bolsonaro e sua campanha podem ser multados em até R$ 2,3 milhões, obrigados a publicar retratação em horário eleitoral gratuito e proibidos de usar o mesmo conteúdo em futuras campanhas. Em 2018, o TSE já aplicou multas semelhantes a candidatos que usaram fake news. Mas nunca antes uma representação tão abrangente — com apoio da Igreja e da Defensoria — foi apresentada.
Essa propaganda afetou o resultado da eleição?
Não há prova direta de que a propaganda mudou o resultado — Lula venceu por 2,1 milhões de votos. Mas pesquisas do Datafolha mostram que, nos últimos dias da campanha, 37% dos eleitores disseram que alegações sobre presos influenciaram sua percepção de Lula. O perigo está na normalização: quando a desinformação vira discurso político, ela se torna parte da realidade.
O que é a Pastoral Carcerária e por que ela se envolveu?
Ligada à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Pastoral Carcerária atua há 50 anos defendendo os direitos humanos de presos e suas famílias. Ela não tem interesse político, mas defende a dignidade. Para Irmã Petra, a campanha de Bolsonaro não só mentiu — ela desumanizou. E isso, para ela, é inaceitável. “Se a democracia não protege os mais fracos, ela não é democracia.”
Existe precedente de campanha sendo punida por atacar direito de voto de presos?
Nunca antes no Brasil uma campanha foi formalmente acusada por atacar o direito de voto de presos. Em 2018, o TSE multou um candidato por disseminar fake news, mas não por violar direitos eleitorais específicos. Este caso é inédito: une direito à informação, direito ao voto e proteção contra discurso de ódio — e pode abrir caminho para novas punições em eleições futuras.